2004-10-25

Muito além do jardim

De meu quarto podem-se ver, através dos portões, quatro ou cinco metros do passeio. Foram-me sempre os quatro ou cinco metros de silhuetas passando apressado. Com o tempo, via-lhes não mais semblante, rosto ou vestimenta, mas tão-somente o vulto. Seguia eu a viver do exercício da pena, nada mais.

Houve uma noite, porém, em que um dos vultos insistiu em tomar forma, recusando-se a passar incólume por minha indiferença. Duas noites mais seguiram-se à primeira -- as anteriores não se contam. Somava então três luares nada mais a iluminar, senão, em holofote, a passagem de uma silhueta agora com semblante, rosto e vestimenta.

No silêncio de meu estudo, partituras há que não mais leio -- dos concertos mais célebres e da ária mais virtuosa prescindo. Recobro, ainda que em momentâneos hiatos, e malgrado a distância -- real ou imaginária, sentida ou pretendida --, o que há muito já tinha por perdido. Bom saber que seus olhos vejo. Bom saber que sua voz ouço. Bom saber que respiro o mesmo ar que se faz vento.

Mas foi-se o tempo de imaginar futuros de pretérito. As certezas destes muros que me cercam já não mais me protegem.


Nota: Título remetente ao filme Muito Além do Jardim
(Being There, EUA, 1979)

(da série Muito Além do Jardim)